fragmentos

daí tinha aquele cara com hálito de feijão, odeio feijão, que era bem articulado pra falar e gostava das coisas em ordem, não bebia nem falava palavrões. certo dia ele foi dar uma cagada quando se deparou com uma tartaruga gigante sentada no vaso lendo um espesso manual de lógica. desde então nunca mais comeu feijão e todos viveram felizes para sempre.
ou talvez era uma vez um gato xadrez que comeu a roupa do rei dos reis. cristo injuriado acendeu um charuto colossal que costumava fumar nos momentos que lhe exigiam maior concentração. chamou de canto a tartaruga gigante que era sua fiel conselheira, e esta compartilhou de um trago, ao fim do qual arregalou os olhos de tartaruga numa exclamação em si bemol, adoro si bemol: o fim é quase aquilo cujo. disse apenas isso. o fim é quase aquilo cujo. cristo fingiu compreender esperto que era, e soltou no ar baforadas de charuto em forma de cujo. dai tinha o cara que cagava tartarugas com gosto de feijão, que odiava desordem acima de tudo e comia as roupas dos livros de lógica chafurdadas na água do vaso sanitário. certo dia, deparou-se com e foram felizes para sempre. esta é a história do manual de lógica em si bemol, fim. cujo desde sempre quase, não obstante o peixe, queira leitor desprezível que esta história em forma de cagalhão não lhe cause náuseas de emoção, e sinto um perigoso impulso de rimar, ante o mar da satisfação. arte anal ainda assim é arte. é? quem falou em arte? tratava apenas de cagalhões de manuais de lógica em forma de si bemol em caldo de feijão e cristo e coisas sujas como cristo, literatura é Caspa. consta que tartarugas são coisas bonitas e profundas. era uma vez, cujo lânguido lamento, fim. eis que de repente, clímax, fim. dai o cara acordou, olhou no espelho e disse supereu este texto é pequeno demais para nós dois e pá deu um tiro na testa. do supereu. dai ele bum caiu no chão estrebuchando da forma como estrebucham supereus quando se atira em suas testas. dai o cara era livre para comer feijão. consta que feijão preservativos e microondas são invenções do demonio para disseminar a maldade e a confusão entre os homens puros. dai a mulher agachou e cagou seu filho morto. pegou no colo o pedaço de carne que nunca chegaria e ser humana e lambeu seu sangue seu líquido amniótico. e sentiu-se triste. cristo que lhe havia estuprado durante o sono e que a impediu de fazer aborto porque aborto é coisa do preservativo e do microondas em nome do demonio do feijão, ficou irritado vendo a mulher triste e a transformou em um manual de lógica. consta que manuais de lógica são obras de um cristo contrariado. dai a tartaruga gigante que não era mulher mas tinha nome de mulher, ou tinha mulher no nome, a tartaruga-mulher que era tartaruga macho gigante, ficou com pena da mulher e mandou cristo para o inferno. chegando lá cristo acendeu seu imenso charuto e confabulou por horas. confabulou por horas. confabulou por horas. desde então, manuais de lógica são feitos para serem amados como mulheres sobre quem um enorme sofrimento veio abater-se. fim. era quase uma vez, epifania, clímax, corte seco do bergman. este texto deve ser lido em silêncio. um silêncio de parede, de coisa infinita no meio da massa bruta e negra. este texto não deve ser lido. exceto por tartarugas. dai o cara fim. toda aquela coisa se arrastando lodosa pelo concreto macio de mercúrio e gasolina, é tão bonito geraldo, compra um pra mim? quero pele de morcego com laços vermelhos. compra geraldo, te dou tudo. solta esse manual geraldo, enfia essa tartaruga no meu nariz. adoro quando você come feijão, amor. fica tão extravagante. vem me come, arranca meu olho esquerdo, assim, isso. agora lambe ele, vai, assim. agora pega ele e passa no feijão, isso meu amor. agora come. com vontade, geraldo, cadê tua fome? ai geraldo, você viu aquela mulher que cagou seu filho morto? bem feito pra ela né, meu bem. mãe sem amor tem que penar. manual de lógica é pouco, tinha é que virar um manual logo de cálculo. amor, compra aquela coisa lambuzenta e fedorenta cheia de úlceras pra mim, vai… olha com ela se arrasta, amor. ta vindo na tua direção, gostou de você geraldo. compra vai, olha que linda subindo na tua perna geraldo. olha essa boca ma-ra-vi-lho-sa cheia de dentes esverdeados de musgo, que fofo! geraldo, ela ta lambendo você, não é uma graça. volta aqui coisa pegajosa, devolve a cabeça do geraldo. nossa amor, como você ta distante hoje. dai a coisa comeu a outra coisa, fim.

a lua, o reflexo da lua branca sobre o lago, o lago, o olho do lago escuro, a noite preto-preta como piche, o gato preto como o lago preto como a noite preta como. nascer é uma palavra absurda. nascer é morrer pra dentro do mundo. no começo é um lago preto-escuro sem estrelas, tudo água, calor de colo por dentro, unidade, sono terno, pergunta-se: nasceu teu filho? nasceu? não se pergunta se alguém nasceu senão com mais gravidade e decoro do que se pergunta se alguém morreu. nascer é mais perigoso e mais triste. nascer expressa algo impossível. como se nasce? como se faz pra nascer? oras, você apenas grita o máximo que puder e tenta abrir seus olhos gradativamente, como depois de um sono bêbado do qual se acorda sob o sol mais branco. e depois? depois você espera ter juízo pra entender essas coisas. levamos a vida toda pra nascer e morremos quando finalmente o conseguimos. daí, nascemos para fora do mundo. e lá também é tudo preto-escuro. eu acho, porque nunca morri. também ainda não nasci, estou tentando abrir os olhos, devagar, isso… mais um pouco, agora já vejo o rosto de alguém. mas não dá pra ver direito porque a luz me invade. e vai continuar me invadindo ao longo dessa morte. até que um dia ela vai embora. no final tem um ponto de luz que parece a lua branca no preto da noite, e quando ela some a gente nasce de novo. eu acho, porque nunca morri. a gente vem da escuridão, do silêncio imperturbável pro estorvo, pra violência absoluta da existência das coisas. e volta pra lá, é tão bonito voltar. tenho uma nostalgia imensa do tempo em que não existia. saudade, falta que se faz presente como uma pedra na garganta. daí que as pesadíssimas lágrimas caem por que o lago muito preto-escuro dentro da gente que é feito da mesma matéria da morte transborda. ela, lágrima enorme, do tamanho do tejo do saramago, morre pra dentro do mundo. lá de onde ele agora observa silencioso e perplexo por ainda não ter entendido algo. por que ainda não nasci. não completamente. este grito que você está ouvindo é o eco do meu grito. ele viajou por vinte e quatro anos até chegar aos teus ouvidos. e nessa viagem, misturou seu dó-mi-sol, harmônicos superiores e complementares com os de tantos outros, que nenhum chopin transcreveria notação dessa música preto-escura. esta se lê nas coisas bonitas e brutas da morte. a vida então é esse conserto ininteligível? quanta pretensão, eu aqui a falar da vida enquanto… enquanto a caspa, o delírio, a gosma. o pâncreas, calcanhar de maracujá. tão bonito isso de ser verme. as coisinhas, estruturas primitivas de vida, vida? vida, sim, elas todas lindas comendo, se reproduzindo apesar da lua branca, apesar do maracujá. eles, os vermes, não precisam perguntar se seu filho nasceu. verme não tem isso de nascer, verme existe como lago, lua, gato. verme não se espanta como tonto diante dessas palavras estranhas. por que é isso, o problema está em dizer. por que dizer vem lá do fundo, antes do dizer. lá de onde as lágrimas, o tejo extralusitano, a morte. a palavra morre da boca pra fora, pra dentro do som. o som veste essa pequena coisa, esse existir de verme, e traz pra dentro do nosso nada. daí ela nasce sentido, no lago muito preto-escuro. significado, ado. quer dizer que já se foi. palavra-gosma, palavra-verme, palavra-preta escura, palavra-palavra. lavra, lavoura. a pá lavra o som. o som embebe o sentido, a música, essa coisa do strijkkwartet, cello descendo e subindo, isso fala! aliás, tocava cello a tua morte, saramagodotejoextralusitano. uma morte apaixonada. quero morrer de morte apaixonada.
tudo o que sei é que esta fruta. - a tarde avança em violinos preguiçosos, vou dizer ao pessoal no bar: tudo o que sei é que esta fruta vermelha. eu vi, senhores, taberneira, eu vi a fruta antes de seu nome. a fruta nua de sentido, bruta, violenta. a fruta abrupta. eu vi o ser da fruta: o ser da fruta é mais pesado do que deus. e todo o problema é que não se pode, eu já disse enquanto você vertia cerveja e celebrava o livro leve sobre coisa alguma, que dizer é sangrar pela penumbra. o verme do sono atravessava a taça da noite,  veio me assombrar a visão da vermelha instância do infinito. não é preciso dizer que perdi a noite e saltei febre em febre a procura das palavras que mentissem a nudez aterradora. e agora estou aqui, nesta biblioteca e você me pede pra tirar estes “tus”, estes vocativos anacrônicos - hilda, me empresta tua mesóclise? emprestar-te-ei, com prazer imenso. é que tenho paixão por tudo o que é obsoleto. o mero fato de não funcionar me faz morrer de ternura incontrolável. eu quero todos os anacronismos, lindos, herméticos e sem vergonha. quero te dar esta fruta. tome nas mãos a coisa mais terrivelmente delicada, que já começa a apodrecer doce e excessiva entre seus dedos. olhe com cuidado. cada vez que você pensa estar vendo a fruta, ela é mais ou menos vermelha do que antes. portanto o que você pensa, já não é mais a fruta, mas um fantasma e este fantasma é você mesmo quando pensado pensando na fruta. você pensa que pensa a fruta, mas pensa você mesmo pensando a fruta, e quando pensa você mesmo, pensa você pensando você mesmo pensando a fruta. ad infinitum. o que me impede portanto ser didático e conciso. não me peça para enxugar o texto, se a própria realidade é um transbordar para todos os lados. agora tire demoradamente a pele muito fina, vê como transpira a realidade assim tocada. como transpira tu próprio. agora cheira este ontológico tomate, posso selvagemente nomeá-lo?  pois é um tomate, um tomate absoluto. um tomate inominável, subversivo, enorme. o tomate de todos os tomates. você pode transmutá-lo no vinagre, atirá-lo contra uma tropa de soldados armados, enfiá-lo no cu. mas nada disso te dirá o fruto que se rebela continuamente contra os códigos dos homens. podemos despojá-lo ainda de seu nome, chamá-lo de “o”. mas isso redundaria numa economia de caracteres e não de problemas metafísicos. pois nos seria necessário dizer que “o” é. a cada vez que pesássemos o ser do “o”, pensaríamos que pensaríamos o ser do “o”, e toda aquela merda. é uma merda ter a visão de um tomate num mundo que não compreende seu caráter supra gastronômico. mas prossigamos. deve-se inventar outra língua para dizer o tomate. deve-se antes, reinventar o modo como se sabe o tomate. e dele aquilo que se quer. é preciso que isso aconteça numa tarde de setembro, depois da primeira chuva em cinco séculos. e que presidam a fundação deste departamento de epifanias poéticas, uma garça negra, um casal de capivaras e dezessete carpas formando um dégradé cromático. em dó bequadro, os violinos, vou dizer ao pessoal no bar que tudo quanto aquilo cujo sempre desde qual o quase não de qualquer nunca eu vi a fruta, estou morrendo, preciso vencer o silêncio que cobre, capa de veludo este tomate, preciso constelar sua matéria rubra, o sangue, o sangue, estou morrendo e minha última palavra é.
esse anjo, esse lagarto, esse processo em direção ao tempo. chove, me deixa fugir da metafísica, que dói, é bárbaro. jorro, implosão de vísceras, mergulho no árido dizer do movimento impossível, manobra, distensão contida no interior do próximo segundo. pode-se morrer de clima? eu morreria dessa chuva e desse café. tudo belamente devastador. o vento muda a direção da chuva, que dança soberana sobre o mundo dos homens, que pretendemos privilégios mas não sabemos chover. o verdadeiro logos - que? - é lá fora. apenas mimetizo o vento, a chuva, o transbordar de tudo isso. e tento - sofro - um registro urgente. um furo de reportagem sobre o quanto as coisas existem e são terríveis. sobre o quanto não sabemos dizer. a água que vem de mares e canais, esgotos, poças, invade a sala que imagino e que te peço para imaginar comigo: as cortinas, os móveis, a penumbra, o cheiro de madeira escurecida. é assim que me sinto, que gostaria de ser, que seria tudo, dependesse de mim, mas não depende. estou num lugar deserto, apesar de não ser. um lugar onde nada se confunde, é tudo delicadamente distinto - um inferno cartesiano. um enfeite matemático e estéril - oh, realidade que abomino. mas eu sei que deus, cadeira e cafeína são mentiras que nos contamos. tudo isso de coincidir nome e coisa, esqueceram de nos avisar que é brincadeira. autodidata, canhoto e chorão, tenho roubado das palavras, inventando novas cores, por exemplo este objeto: primavera que derrama flores sobre tudo, perversa invadindo a pedra, vingativa, os pássaros voam e trepam sob a chuva, cachorros velhos e pederastas se amam nos pátios entre as pernas do perplexos, flores-flores e mais flores brancas e doces infestam o esgoto, carpas em formação de combate aguardam sob o sol de uma manhã em que contornos inexistem, o momento em que desviarás os olhos de pudor, e então desovarão centelhas de impossibilidades rubras. a vida é o colapso da irrealidade com que nos traímos mutuamente.
o hiato monstruoso que trago na garganta. esta bola de silêncio escarro e deus. esta coisa toda cheia desse deus que nunca coisa alguma. lhe daria nome de anjo e afagaria cantigas para que jamais deixasse de ser. mas é tempo de falar. de repente os caixas dos supermercados, cobradores de lotações, telefones, rostos conhecidos, tudo tão pesado e essa coisa de falar. de repente estou dentro de um aquário, peixe perplexo e lento entre o ferro, o caos. minha voz viaja nas borbulhas da minha angústia, explodem na superfície, onde ninguém ouve. de repente tenho que constar no mundo, como coisa que interrompe o próprio sono por engano e dispara bêbado no desaforo do semáforo vermelho. dou por mim como um soluço triste. segurando uma cerveja. observando apaixonadamente os ácaros num manual amare-lido. calculando distâncias e descobrindo que não. não existem jardas, centímetros, minutos. existe a distância entre a língua e o isto. mas apesares contados, o saldo é este sofrer a língua, a música da língua, sua representação no espaço, os vazios entre os bichos. dizer é um pântano e nele festejar sua cartografia anárquica. tudo que nos resta de mais vivo e perigoso. e é por isso que este trago, vaga que me leve, vento que me traga. e essa chuva que não passa.
bem vindo de volta, disse a voz horrendamente familiar dentro da cabeça, todas as coisas estão como deixaste, garrafas, maços de cigarro, metafísica, tudo. enterrou-se na coberta. posso ver teu rosto em todos os lugares, criança. tivesse tua pele sido arrancada, sobrassem-te apenas os ossos da cabeça, saberia no escuro essas tuas lágrimas, e essa tua nova mania de sombra. consta que ele agora via sombras. as suas, e cismava terem elas alguma substância. queria deixar de ser minha própria sombra, dizia e derramava café sobre os papeis, tropeçava no espaço: queria correr até o fim do mundo e voltar e saber a luz e distribuí-la aos povos, assim, um herói, e salvar a todos e a mim dessa sombra, essa coisa que nos prende a nós mesmos - mas onde este crivo, é tudo tão areia e passagem das células, como posso ser tantos e um, o que me impede de simplesmente desprender e evaporar e cair chuva em outro açude e ser outra a alma de minha água, o que me impede de ser você, que é tão familiar que eu vomito completamente - vomito completamente - sobre tudo e tenho que imaginar um bloco de silêncio bruto na garganta para não gritar? quem é você, voz familiar? eu sou você quando desiste de passar. sou a tua consciência da inércia, volto sempre que os demônios no estômago cochilam, sempre que acaba teu café e você dorme cinco dias, sempre que tem pesadelos e acorda chorando, sou eu quem paga a conta, estas asas muito caras que você nunca aprendeu a usar. e também sou o responsável por te acolher e movimentar teu corpo entre os corpos, articular essa voz esganiçada para se desentender profundamente com outros corpos que você supõe que são como você, sujeitos, você diz, mas você não sabe. você não pode tocar o sujeito de um estranho que pisa no teu pé, nem no amor você pode. mas eu, tenho controle absoluto, sei o quanto estás doente e te acalanto e te apresento os objetos estúpidos ao teu redor - eis esta cadeira. você pode tocá-la. não é um sonho, e sempre serás correspondido, por que ela é como eu. ela está cadeira em ser cadeira. neste momento você não me ouve, está dormindo. os objetos dormem, criança. e é por isso que eles têm contornos, você pode confiar nos contornos e no sono que tudo será muito solar e bonito e todas as flores serão APENAS FLORES. 

e a noite calma e quente sobrevoa hemisfério sul.
surpreendo-me corpóreo no meio da rua e tenho que arcar com pernas e braços que me espreitam em silêncio numa existência tácita e sem pensamentos como tenho inveja dos corpos extensos tão absurdamente banais e efêmeternos como eu queria ser igual a mim mesmo porque não existo assim eu sei por mais que tente me explicar não compreendo nada do que digo e você sabe como é foda dar sentido a uma palavra dita repetidas vezes bom dia eu digo perdão e é uma mesma coisa você diz e eu me calo e sei que até o silêncio pode ser idêntico a qualquer balbucio o murmúrio dos rios é mais bonito do que a tua voz mas o murmúrio dos rios não diz eu te amo o rio é incapaz de dizer coisas sem sentido como amor ele só diz rio que é como dizer que ser é rio é igual a ser rio mas não diz isso porque daí temos dois rios e nenhum pode ser igual ao outro eu acho que penso ás vezes que tenho certeza que sei que talvez dizer seja cortar um pedaço do nada e perder em seguida pra depois procurar e chamar essa busca de vida e vocçê não presta a menor atenção no que digo diz olha uma lagartixa eu vejo um jacaré porque sou visionário meu amor e você ri mas não se lembra que eu estava falando da vida e dos corpos e não tem a menor importância nada é mais belo que o seu jacaré-lagartixa é mais bonito que dizer eu te amo quando você me diz olha o jacaré o jacaré me diz que você quer dizer que me ama pois é assim quando a gente ama só pode dizer isso o tempo todo não interessa que você fale do tempo ou de qualquer loucura como os corpos e a vida é sempre o amor que se diz e ponto está impregnado na língua eu digo bom-amor dia-amor como-amor vai-amor você-amor amor-amor e você diz que está tudo bem e eu sei que isso nunca está e a gente diz como um mantra numa espécie de rito para que não acabem as palavras nunca e você sabe que a fome e a sede e o ódio são terríveis mas nada pode ser pior que não poder dizer fome sede ódio sem as palavras não podemos nem morrer e estes meus braços essas minhas pernas que não dizem nada apenas são parte de mim o corpo é um parasita um fantasma uma perturbação do limbo e agora você me olha mas ainda não me ouve apenas presta atenção na minha boca e novamente concordo que o movimento das bocas é mais bonito que as palavras mas fica engraçado se a gente pode pensar que as palavras também são corpos como lagartixas e bocas e você me morde sorrindo quer me deixar louco como se eu já não estivesse veja bem tudo isso de viver me deixa muito cansado o tempo todo tento entender como funciona isso e aquilo e fico de porre do mundo como um relógio pode ser mortalmente entediante quando a gente pensa que entendeu seu mecanismo mas daí você me diz essas coisas de jacaré e eu tenho certeza que viver deve valer alguma coisa nem que seja pra dizer jacaré-amor
a chuva já era senhora e eu até os joelhos perplexo chovendo também nesta cidade difícil e azul de fauna-flora e ruas tão bem-mal exploradas pelo poema faminto que sussuro sem saber tods os dias a chuva já era senhora no tempo em que os lugares não tinham nome nem tamanho e essa pedra na garganta pêndulos os olhos a cabeça contraindo as cores dessa coisa eu bem conheço é ocre amarelo foda com gosto de remédio e já não posso sem fazer monumental esforço minimamente respirar ja era senhora a chuva quando esses fantasmas irromperam na sala do meu sonho curiosos com a mobília e a mãe e eu ficamos olhando meio desconfiados as três pessoas sem nome vasculhando tudo cheirando os móveis apalpando as cortinas examinando os pequenos elefantes de louça coloridos e a vó pedia fica e chorava no escuro de outra casa e eu estava lá e não aqui malabarista ou sombrio autômato o mundo moendo os ossos os pés sobre uma geleira num samba prelúdio do naufrágio bebendo por toda a tripulação que me trespassa enquanto soçobramos felizes ao fundo da noite já era senhora quando a distãncia fez retesar a corda e me puxar a pele até rasgar e já não podes ouvir-me fluir para fora de mim quando já não passo de um femônemo sonoro oco e deformado que você tenta mas não pode preencher nem com toda atenção e ou delírio forjados no amor e na tristesa já era senhora quando
ela lambuzou o rosto do rapaz com mousse, debaixo de um piano do godard em loop. o rapaz pediu os olhos dela, suas mãos, sua boca. ali estava feito não um laço, mas um túnel. e entre a massa espessa e desagradavelmente morna dos dias, eles agora podiam se tocar através do vácuo, onde a umidade íntima fez prevalecer certos timbres como o da alfazema. ela, que tinha o nome no aroma que a materializava, apertou-se contra o peito do rapaz. os dois rolaram décadas seguidas dentro da noite, noite curta em que descobririam em comum o fascínio pelo tempo e o desgosto por ponteiros. conhecer um outro, coisa assim tão impossível, eles realizavam sem saber. perfurando mais a massa opulenta e cúmplice dos muros e das placas que balizam os sonhos, mergulhando no espanto esquecidos do medo, animavam todo um pomar de singularidades, provando pela primeira vez frutas antigas, inventando outras tantas. algum fremir elétrico os unia onde estivessem. não eram dois amantes, pois amor é coisa humana. eram antes, o próprio impulso em direções convergentes: eram o beijo quando unidos pela boca, o abraço quando unidos pelos braços, o próprio espasmo quando se sobrepunham trêmulos, e a paz, quando deixavam de ser por uns instantes emprestando a existência aos objetos e às plantas. o mundo mesmo era parte de um certo modo de se trançar as pernas na rede ou escutar música em silêncio. mas à parte toda delicadeza aparente, o amor, como dado entre o rapaz e ela, só pode ser tomado com imensa surpresa e inquietação: a beleza contida na catástrofe, dois amantes se amam e nada que se diga traduz a violência do encontro. basta dizer que o próprio firmamento se desloca para que dois rostos estejam alinhados de frente, prontos para o menor contato. as respirações se cruzam sinalizando uma troca tácita em um idioma que apenas aquilo que se move com o vento pode deter. a maneira como a totalidade se manifesta: quebre-se um espelho em quantos pedaços quiser e os disponha aleatóriamente pela superfície do real. cada novo fragmento cantará sozinho uma canção de tudo. esta canção, ouvimos diante da morte, ou quando sozinhos na beira de um lago exitamos em prosseguir, flagrados em nossa auto-inspecção noturna por uma lua mais presente que nós mesmos, que não nos deixará dormir por noites, e nos conduzirá a uma loucura lenta. esta música, eles a executavam: antes, eram a própria execução da melodia deflagrada no decalque dos menores acontecimentos do redor. e nada disso, advirto, tem mais a ver com o amor ou com a beleza. o doce vai descsendo numa escala a partir do azedo, gradativamente até o insuportável: o podre, sabor subterrâneo, totalmente diverso em sua origem. mas não se trata de uma ou outra nota da escala de sabores, e sim da própria gradação. como pensar que o movimento que conduz uma ameixa de azeda, pessando pela maturidade, em que seu sabor melhor se manifesta ao paladar, até o intragável, pode ser em si belo, ou em si realizar o próprio amor? esta não é um fábula e não se compromete a dar respostas. mas pensemos que estes nomes horrendos sejam apenas pregos que atiramos no fundo de um rio para crivar o tecido de água e assim paralizá-la, para que possamos dar-lhe nome. dar nome é sempre mais afim da morte. ainda, aquilo que de horrendo pode-se prever na melodia é seu desfecho. penso num compositor preocupado em manter um ouvinte em êxtase durante uma audição. ele atira os dados e articula as linhas para que tudo tenha unidade, mas sobretudo, para que se mantenha a melodia por resolver. não uma passagem melódica secundária, mas a grande melodia que permeia toda música. esta somente deve acabar quando cessarem os motivos de seu desenho, e por fim esgotados, vierem eles próprios a desabar sobre o tablado, ora enfáticos e secos corpos orgãnicos esvasiados, ora folhas caídas que diminuem em intensidade e acabam num murmúrio inaudível sobre séculos de folhas secas ancestrais. o compositor sabe que acabar uma melodia é experimentar a morte. é o que há de terrível e inefável no lance entre o rapaz e ela. e sempre esta tensão os mantém, sempre esta urgência os desperta. sem nomear o amor: é preciso dizer menos que isso. é preciso calar o ímpeto que nos promete sempre um território amigo. e perscurtar este deserto vivo que seduz pelo que tem de imprevisível e que também por isto causa temor. o cenário do sohno nunca serviu de leito.
vejo. esta paisagem vermelha quase. talho meus sentidos todos ao sabor de seu relevo. posso dizer que perco meus olhos nesta tela que inutilmente recomponho, tento recompor. posso dizer também que existir tornou-se isto, esta ideia fixa, esta vertigem. que nada do que eu faça me absolve: sou cúmplice das cores deste céu, do cheiro desta terra, da textura irresistível de toda superfície. minha pena é jamais recuperar uma certa ilusão do todo: como um encadeamento de fatos jamais foi suficiente para constituir uma história, nada do que posso deter disso que me toma por completo, somadas suas manifestações, restitui o céu, cada detalhe desta velha árvore, seus veios escuros e secos, o cheiro do musgo, o calor do sol no meu rosto. sou eu todo em fragmentos quem lamenta consternado. e agora o mundo tem meus próprios olhos voltados para mim. e não pode me recompor, eu estilhaçado, cada parte um mundo solitário e faminto, sangrando pelos poros o redor. o murmúrio das coisas escorre atravéz dos meus ouvidos para o meu de dentro. eu já não ouço, sou este ouvir o murmúrio das coisas. mas dizer isso não é suficiente e nunca será. assim como dizer que não se pode recompor um relato fielmente por lacunas na sucessão dos fatos não o torna mais completo. ser um espelho quebrado e suportar que o mundo chegue em fragmentos, que jamais se possa juntar os cacos para completar esta paisagem… esta paisagem pela qual posso vender minha alma, matar um homem, me calar para sempre, esta paisagem que é tudo o que existe e da qual minha própria existência depende violentamente. eu abraço a queda, meu corpo cortando o ar assobia e aprecio esta música.
hoje o sol é uma lâmpada de geladeira, e no entanto tanta luz, e esse calor que parece dizer ao meu corpo coisas milenares, a poeira levantando do chão para buscá-lo, o mato acompanhando seu turno numa dança de micromovimentos sincronizados, hoje o sol parece nos olhar ternamente do azul e cantar uma canção dourada e fria, uma canção na qual enfio meus braços como enfiasse nas mangas de uma blusa muito velha e de tantas cores quantas se refrescam sob a indiferença deste astro, ante meus olhos vermelhos e fechados, da minha boca árida de qualquer palavra, das minhas narinas suspensas no fio de um perfume sagrado, do epicentro do colapso de todos os meus nervos extendidos sobre a pele deste mundo. lá onde havia mito, já a técnica: os deuses são ferramentas de combate, instrumentos para a agricultura, as palavras movimentam todas as esferas inóspitas sobre teus cabelos de relva, o sol jamais foi outra coisa que não este lamento pirotécnico, esta quimera puntiforme incandecente, que de tão impossível queima, este sol, esta coisa da qual emana toda idéia da fixidez e da transitoriedade, esta imagem do início, figura da boca, dos olhos, sol, coisa de brilho e movimento, semente do fogo, rainha de todas as pálpebras, senhora das cores dos frutos e dos legumes, das cores das peles, das cores das folhas, das cores imaginárias, do movimento dos corpos no espaço. hoje este demente artesão das coisas, este maestro possuído pela sinfonia dos instantes que se criam sussessivamente uns aos outros e outros a outros, este colossal ponteiro de voz grave e infinita, veio me dizer: - você, quasenenhumpassageiro, embriagado no convés que desliza sobre a seiva da noite, você que erra perplexo sobre o chão debaixo dos teus pés teus fixos e descalços, você que é sonhado por peças de uma mobília inumana, você que rouba o vento quando respira, saiba, quasenenhumandarilho, tudo dança, tudo quer festa e guerra, você não deve parar de dançar, nunca abandone seu corpo fora dos trilhos da música, não tente dormir, suporte, dance mais e mais intensamente sobre este tablado acidentado e incógnito que por sua vez dança, o tempo é uma zabumba, quasequalquerbailarino, carece domínio do pulso, da respiração do planeta, ouvido sensível aos harmônicos das nuvens, pés preparados para séculos de sapateado sem descanso, carece coração, carece coragem, carece corporeidade, ímpeto, irrazão, carece desespero, serenidade, reignação, e dor, carece uma dor morna para não perder o sentido da pele.